Centro Brasileiro Integrado

Os desafios da EJA para incluir quem a escola abandonou.

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) pode ser vista como o ápice do retrato das desigualdades sociais e econômicas do Brasil. Isto porque congrega em si duas faces: as fragilidades de uma escola excludente diante da diversidade e, no outro extremo, o direito de aprender independentemente da idade. Com isso, carrega também a responsabilidade de não excluir estas pessoas uma vez mais.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2017 deixam claro quem a escola abandonou: sete em cada dez brasileiros sem Ensino Fundamental completo têm renda familiar de até um salário mínimo. No Nordeste, 52,6% dos brasileiros sequer concluíram o Fundamental, enquanto no Sudeste, 51,1% têm pelo menos o Ensino Médio. As pessoas brancas têm 2 anos a mais de escolarização em relação às pretas e pardas e mais chances de chegar ao nível superior: 22,2% contra 8,8%.

As desigualdades também envolvem as questões de gênero e identidade. A proporção de mulheres jovens que não estudaram por conta da responsabilidade exclusiva de desempenhar os afazeres domésticos ou cuidar de pessoas é 32,6 vezes superior à dos homens envolvidos nessas atividades. Além disso, no Brasil, a evasão escolar de pessoas trans chega a 82%.

Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias aborda como os principais temas da educação se relacionam com o projeto de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de educação.

“A EJA não é só um problema educacional, mas político e social”, resume Sonia Couto, coordenadora do Centro de Referência Paulo Freire, do instituto homônimo. “Para resolver um lado, tem que resolver os outros.”

Não é isso, contudo, que se vê na prática. A especialista explica que os alunos evadem ou migram para a EJA em razão das falhas presentes no Ensino Fundamental e Médio. O Estado, por sua vez, não assume sua responsabilidade de resolver as questões que levam ao abandono escolar, culpando estudantes e professores pelo fracasso escolar e fazendo com que a EJA tenha mais um caráter assistencialista do que de direito, como assegurado pela Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Maria Margarida Machado, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), concorda: “Usam a modalidade para transferir a responsabilidade, encobrindo a obrigação do Estado de garantir que esses adolescentes possam concluir a Educação Básica no tempo adequado.”

Com a crise econômica e os recentes cortes de investimento na Educação Básica, exacerbados na Emenda Constitucional 95, que limitou o teto de investimentos em Educação e Saúde por 20 anos, o cenário não é promissor.

Um levantamento de fevereiro de 2018 do Banco Mundial indica que jovens de 15 a 25 anos vivendo em lares afetados por quedas nos rendimentos têm 2,3% mais chances de abandonar os estudos.

“Há uma precarização total da educação. Agora, com os investimentos limitados, tende-se a baixar ainda mais a qualidade na Educação Básica e produzir cada vez mais alunos da EJA, analfabetos e analfabetos funcionais”, explica Sonia.

Migração para a EJA: causas e consequências

No Brasil, 30% dos alunos da EJA têm entre 15 e 19 anos, segundo o Censo Escolar de 2017. A presença de adolescentes neste espaço se dá porque muitos precisam trabalhar no período diurno, mas não querem abandonar os estudos. Também por causa da distorção idade-série resultante de uma cultura de fracasso escolar ou por serem induzidos a se preparar para o ENCCEJA e obter um certificado mais rapidamente.

A EJA persiste em um modelo compensatório, com tempo e conteúdos reduzidos, mais distante de uma formação integral e emancipatória

Maria Margarida Machado explica que essa migração traz prejuízos, sobretudo, para os adolescentes, porque a EJA persiste em um modelo compensatório, com tempo e conteúdos reduzidos, mais distante de uma formação integral e emancipatória.

“A escola deve preparar os alunos para lidar com o mundo de hoje e para entender a si e aos outros enquanto seres humanos que vivem coletivamente, capazes de alterar o meio. Não é um certificado que garante isso”, diz a professora.

Para ela, a exclusão da EJA do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) colabora para a marginalização desta modalidade de ensino. “Se o SAEB existe para melhorar a qualidade da Educação Básica, ao retirar a EJA da avaliação, encobre-se a qualidade do sistema inteiro, inclusive, porque é do interesse de muitas escolas que os alunos migrem para a EJA para, com isso, elevar sua nota nas avaliações”, diz.

Políticas públicas e financiamento da EJA

A maior parte do dinheiro destinado à EJA vem do Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, mas o repasse que a modalidade obtém é inferior às demais etapas. “Desde a implantação do Fundo, a matrícula na EJA tem o menor valor. Se um aluno do Fundamental vale entre 1 ou 1,2, o da EJA vale 0,8”, explica Maria Margarida.

“Sem ofertar uma educação de qualidade, as pessoas não vão voltar para a escola. E se voltarem, é provável que não permaneçam”, alerta Maria Margarida Machado

Sonia Couto reforça que não há incentivos para que estados e municípios ofertem a EJA, delegando a obrigatoriedade para a sociedade civil. Os cursos de licenciatura e pedagogia tampouco oferecem uma formação de professores para a modalidade de maneira adequada.

“A EJA precisa ser vista como política pública, e não como programa ou caridade. Mas não é isso que acontece. No Plano Nacional de Educação (PNE), por exemplo, as quatro metas mais próximas de atender a modalidade se encontram em posições praticamente impossíveis de serem alcançadas”, lamenta.

Para Maria Margarida, esse conjunto de negligências mostra que não entendem o significado da modalidade. “Sem ofertar uma educação de qualidade, pensada para o aluno e suas vivências, com professores bem formados, as pessoas não vão voltar. E se voltarem, é provável que não permaneçam”, alerta.

O retorno à escola

Se parte do entrave da EJA está em garantir que estas pessoas tenham condições de dedicar tempo para os estudos, outra vem da dificuldade de ressignificar a escola. “Quando nossos alunos de EJA chegam aqui, temos que trabalhar com a autoestima deles, porque se sentem fracassados e incapazes. A escola não pode perder de vista todos esses sentimentos e a bagagem de vida que estes alunos trazem, porque tudo isso interfere na aprendizagem”, afirma Eva Chow, coordenadora de projetos do Centro Paula Souza.

Sonia Couto pontua ainda que é preciso fazê-los entender que foi a escola que fracassou, não eles

Sonia Couto pontua, ainda, que é preciso fazê-los entender que foi a escola que fracassou, não eles, e que o ambiente onde estão agora é diferente daquele onde se sentiram humilhados ou jamais acessaram.

“Temos que mostrar que são pessoas de muita coragem para voltar e enfrentar esse desafio, ou para os que nunca estiveram em uma escola, que são capazes de aprender. Mais do que isso, que eles já têm muito conhecimento acumulado por meio de experiências ao longo da vida e que esses saberes são tão importantes quanto os curriculares. Depois de entender isso, eles deslancham”, diz Sonia Couto.

Foi assim para Ademildo Teixeira. A última vez que ele pisou em uma sala de aula foi aos 14 e só retornou 43 anos depois, aos 57, graças ao apoio que teve das filhas, ambas professoras, para que voltasse a estudar.

“Tive que sair da escola para sustentar a minha família”, conta. Assim como ele, a maioria dos que deixaram a escola, 41% segundo a PNAD de 2017, o fizeram porque precisavam trabalhar.

“Os inúmeros questionamentos / Surgidos um após o outro / A cada nascer de um novo dia. / São momentos de aprendizados / Provocados pelo que me foi revelado / Ampliando o horizonte do meu conhecimento” – Trecho do poema “Questionamentos“, de Ademilton Teixeira Sobrinho.

O que o atraiu de volta foi seu amor pelas palavras e a vontade de publicar um livro de poesias, bem como uma maior estabilidade financeira. Ao final deste ano, Ademildo concluirá o Ensino Médio na EJA do Instituto Federal de Goiás (IFG) e prestará vestibular para o curso de Letras.

Eva Chow explica que na EJA é fundamental trabalhar levando em consideração a história de vida dos alunos, respaldadas por muito diálogo e autonomia. “Temos que trabalhar com projetos, autoavaliação, trabalhos em grupo, porque provas não fazem muito sentido. Além disso, muitos vêm com trauma da avaliação, porque era o momento em que repetiam de ano”, lembra Eva.

Dona Eda Luiz, gestora do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) Campo Limpo, em São Paulo, deixa sua recomendação, fruto de mais de 20 anos de experiência ensinando e aprendendo com jovens e adultos excluídos da escola.

“Essas pessoas buscam a escola para pertencer a um mundo que cobra muito, mas não oferece oportunidades iguais. Então a escola tem que oferecer isso, além de respeito, escuta atenta, reconhecimento de diferentes culturas, protagonismo, aprendizagem significativa, e construção coletiva dos conhecimentos”, diz.

 

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